CÂMARA JR., J. Mattoso. Línguas européias de ultramar: o português do Brasil. In: CÂMARA JR. J. Mattoso. Dispersos. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1975. p.71-87.
Câmara Jr. inicia seu texto intitulado “Línguas européias de ultramar: o português do Brasil” afirmando que o português do Brasil apresenta problemas técnicos de análise comparativa entre a língua transplantada e a sua congênere no habitat europeu, haja vista que, a questão das condições social e linguística do mundo ocidental moderno dá a essa transplantação de línguas, provenientes de movimentos migratórios, uma conotação complexa.
O autor problematiza essa questão a partir do exemplo da língua grega fora da Grécia: nas colônias itálicas e da Ásia Menor, que se caracterizou pelo sentimento coletivo de uma unidade lingüística complementado pelo sentimento de uma unidade cultural. Contudo, o autor expõe que o grego antigo foi um ideal lingüístico, pois reunia, mesmo na língua literária, dialetos diversificados. Essa diversidade se dava graças ao fato de que cada cidade grega, metropolitana ou colonial, era em princípio uma unidade em si mesma, que cabia o direito de ter uma língua autônoma dentro de um mosaico lingüístico geral. Ainda segundo Câmara Jr.: “Nunca na Grécia se apresentou a antinomia de uma língua metropolitana e outra fora da metrópole, como se apresenta para o inglês da Inglaterra e o da América do Norte e Austrália, ou entre o Espanhol da Espanha e o do América espanhola, ou entre o português de Portugal e o do Brasil.”
Voltando a discussão acerca dos tempos modernos, Mattoso afirma que o desenvolvimento do nacionalismo na Europa – com Estados coesos e unitários – foi o traço político e social mais marcante desse período. A coesão e a unidade, enquanto ideal social, se estendeu à língua, onde se criou uma norma que tinha como suporte uma disciplina gramatical rígida, que procurou impor-se, na tentativa de alcançar o status de língua nacional. Nesse contexto, a língua escrita, mais necessariamente a literária, cumpria com esse ideal, tornando-se um modelo concreto, e, conseqüentemente, a língua oral e a diversificação dialetal foram relegadas.
Essa tentativa de conceituação e fixação de uma língua acarretou, durante o período da colonização ultramar, a visão de que a língua colonial, assim como os dialetos da metrópole, era fruto da ignorância e da bruteza, e, portanto, estava em condição inferior com relação à língua standard, que se caracterizava pela educação e refinamento social. Em contrapartida, com a Independência das colônias americanas e da Austrália, essas se tornaram nações livres, e eram politicamente colocadas no mesmo nível que as suas antigas mães pátrias, ocasionando, dessa forma, um mal estar com a conceituação lingüística já estabelecida.
Contudo, Mattoso afirma que, ocorreu nesse período da Independência uma espécie de perplexidade doutrinária em matéria de língua. Diante deste impasse, a solução adotada consistiu na separação da língua do conjunto dos elementos culturais da nova nacionalidade e na tentativa de mantê-la subordinada a norma metropolitana. Especificamente no Brasil, essa solução ficou sob responsabilidade dos gramáticos e filólogos oficiais, dentre eles, se encontrava a figura de Mário Barreto, que teve como associado, na prática da língua literária, o orador e escritor político Rui Barbosa.
Câmara Jr. expõe que, em contraposição a idéia da subordinação do português do Brasil à norma de Portugal, existiam autores que tentaram estabelecer uma norma lingüística nova, fundamentada no uso geral do Brasil; como é caso, logo após Independência, de Visconde da Pedra Branca, bem como filólogo e direcionista Macedo Costa, que afirmou: “já é tempo de escrevermos como se fala no Brasil e não como se escreve em Portugal”. Câmara Jr. cita também, outros autores que se dedicaram na discussão acerca da língua “nacional”, dentre eles se encontrava: José Jorge Paranhos da Silva, Batista Caetano e Renato Mendonça; no âmbito da produção literária, se destaca a presença de José de Alencar. Quanto a Renato Mendonça, procurou fundamentar a sua idéia de “língua brasileira” nas idéias lingüísticas sobre “evolução” e noutras sobre a influência dos substratos lingüísticos, que Ascoli desenvolvera partindo da linguística românica.
Posteriormente, Mattoso (p.116-117) faz uma análise das línguas indígenas no Brasil, que segundo ele, constituem um complexo conjunto de sistemas muito diversos tanto genética como tipologicamente, porém foram substituídas no intercurso dos índios com os brancos por uma língua única: o chamado tupi, que era a língua da costa brasileira, da Bahia e do Rio de Janeiro. Essa utilização do tupi como única língua, representa, na verdade, um modelo ocidental de uma língua de comunicação (a língua geral), que foi posta a serviço da catequese e passou a servir de meio de contato entre os indígenas e os brancos; e teve como conseqüência, a adoção dessa língua geral por diversas proveniências étnicas indígenas no seu processo de aculturação.
De acordo com Mattoso (p.117), essa língua geral, como língua de intercurso, despojou-se de seus traços fonológicos e gramaticais mais típicos para poder se adaptar à consciência linguística dos brancos e o português, nela atuou assim, impressivamente como “superestrato”. Dessa forma, o tupi missionário só trouxe para o português do Brasil empréstimos lexicais, que se adaptaram à fonologia e à gramática portuguesa.
Mattoso Câmara contrapõe as línguas indígenas com as africanas, afirmando que os escravos negros adaptaram-se ao português sob a forma de um falar crioulo. Nas fazendas da época colonial e do Império o contato dos senhores brancos com seus escravos se dava de forma estreita, ocasionando, dessa forma, inovações e simplificações do português do Brasil em face do europeu.
O autor critica a idéia de substrato africano ou indígena no sentido de a partir disso ter se constituído uma nova língua no continente americano, bem como a afirmação de que houve uma mistura lingüística. Pois este adota a posição de Antoinne Meillet, que consiste na idéia de que cada nação possui “uma consciência linguística coletiva” que estabelece “uma realidade social” de unidade lingüística em meio de uma diferenciação dialetal. Dessa forma, Mattoso Câmara conclui que nenhum falante brasileiro tem consciência de falar uma língua distinta do português europeu, que há nele um sentimento de comunidade e unidade linguística.
Mattoso Câmara afirma que se faz necessário uma reformulação do problema da língua nacional; inicialmente, deve-se passar a considerá-la como um organismo dinâmico, ao contrário da idéia de língua “fixada” de forma unitária e rígida. Ao se desconstruir o “mito” da unidade linguística, a língua é entendida em suas especificidades, pois esta se diversifica no espaço em dialetos, como também se diversifica entre as camadas sociais de um dado lugar.
“(...) A língua está de tal modo ligada à sociedade e à cultura, que a diferenciação cultural e social entre a produção européia e a congênere americana, desde a época em que uma representava a metrópole e a outra a colônia, determinou uma dicotomia lingüística. Não é uma ficção falar num português americano, em bloco, em face do bloco do português europeu. Talvez o quadro mais exato da dialetologia portuguesa ampla, compreendendo de um e outro lado do Atlântico, seja a de dois grandes dialetos, o lusitano e o brasileiro, que por sua vez se diferencia numa multiplicidade de subdialetos.”
Mattoso Câmara faz um paralelo entre o que ele denomina de dialetos português e europeu, afirmando, então, que a diferenciação entre ambos se dá essencialmente no quadro de uma superestrutura comum: no âmbito fonológico, morfológico e sintático. Mas essa diferenciação se refere à língua corrente, usual e falada, haja vista que, a norma lingüística portuguesa européia se mantém na língua escrita e literária ainda presa a uma espécie de período clássico. Essa manutenção da norma lingüística européia persiste porque a língua escrita e literária no Brasil constitui um traço de união no seccionamento dialetal do país.
A partir da cisão entre a língua escrita e literária em face da língua coloquial, Mattoso Câmara, limita-se à análise de duas discordâncias bastante marcadas entre ambas – uma de ordem fonológica e outra de ordem gramatical. Esta análise foi feita pelo autor com o intuito de se demonstrar que há uma variação com relação à língua oral espontânea ou à língua escrita, que por sua vez exerce influência sobre a língua oral formalística, comprovando dessa forma, a complexidade existente entre o português do Brasil face ao de Portugal,
Mattoso Câmara conclui seu texto ratificando que para a língua coloquial oral temos uma rede de subdialetos, que se reúnem em dois grandes dialetos: o lusitano e o brasileiro. No âmbito da questão escrita há uma única norma para Portugal e Brasil, contudo, esta norma está se diferenciando no Brasil devido ao influxo da língua coloquial oral. O autor também conclui que essa diferenciação não resultará numa norma escrita exclusivamente brasileira, pois a escrita brasileira mantém uma ligação com a de Portugal, se constituindo como uma espécie de “ponte larga de trânsito” entre os dois países.
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